sexta-feira, dezembro 26, 2003

A travada que antecede a queda

Uma das grandes dicotomias que existem no mundo ocidental é a dos vitoriosos e perdedores. Não existe lugar para empates: ou você ganha ou você perde. Se ganha, tem por direito os louros da glória, a lembrança da conquista e o direito de humilhar aquele que foi subjugado. Se perde, tem como prêmio o escárnio dos vencedores, a culpa da derrota e a vergonha estampada em sua cara.

Assim vem sido desde que o conceito de vencedor e perdedor fora concebido. Mas com o passar do tempo ocorreu um processo interessante: a perda do sentido da palavra “derrotado”. Você pode muito bem ser um derrotado na vida, basta que ninguém saiba. Ora, como as pessoas ao seu redor podem te amolar quanto aquilo que elas não têm conhecimento? É muito fácil ocultar o seu fracasso... nada que um carro 0 km, um sorriso perolado pré-fabricado ou alguns mililitros de silicone não ocultem...

Este é o grande problema: não existe mais uma dicotomia vencedores x perdedores mas sim vencedores x perdedores explícitos. Não ocultar o seu erro talvez seja a maior prova da sua inoperância e da insignificância da sua existência para a humanidade. Mas talvez não... talvez isso seja como potencializar ainda mais a importância da palavra “perdedor”. “Perdedor” passa a significar não apenas “incompetente” mas adquire um significado extremamente complexo que pode ser traduzido como “incompetente, além de fazer essa merda deixa ela aí para todo o mundo ver!”...

Mas o grande “X” da questão é: se a derrota atualmente se resume à humilhação que a sucede, o conceito de derrota perdeu o sentido e não temos mais uma noção exata do que é derrota? Aparentemente sim! A humilhação se tornou o âmago da derrota, subvertendo a relação de ação-reação que existe entre essas duas. No entanto, um dado instante que antecede às humilhações e até à definição dos vitoriosos e perdedores é onde reside ainda um pouco da essência do que é derrota.

Imagine um golero que vê nitidamente uma bola passando por entre suas pernas... ou um garoto que subindo uma árvore acaba de escorregar... ou um acionista que vê as suas ações recém-compradas começando a cair vertiginosamente... O que eles têm em comum? As caras desesperadas e da certeza de que os seus traseiros estão na brasa, talvez um pensamento calado que não deve diferir muito do “Ai! Eu me lasquei!”. Eles não apenas têm a certeza de que eles não vão se sair muito bem, como de que eles não possuem nada ao seu alcance para mudar a “agradável” situação. Eles são atingindos por uma sensação que mistura um pouco de frustração e um pouco de impotência e prisão que beira à claustrofobia.

Nós demos muito valor à nossa imagem para com os outros. Uma vaidade absurda e imbecil que não visa à nossa satisfação com uma perfeição talhada por nós, mas sim uma perfeição padronizada e estilizada e acessível a qualquer mortal. Nos tornarmos medíocres, medíocres aponto de ignorar esse momento mágico: a travada anal que precede a queda. Um momento em que todos os homens são iguais, uma sensação tão universal e atemporal quanto o amor ou a paixão. Ignoramos a magia desse momento em nome da nossa imagem (medíocre)... imagem essa que logo após esse momento mágico será depredada pelas mais diversas pessoas (medíocres) que poderiam até ter presenciado o ápice da vitória de um sobre o outro, mas nunca terão sequer uma noção torpe da travada que antecedeu todo espetáculo de esculhambação que eles ofereceram ao perdedor.


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