sábado, fevereiro 04, 2006

Homens de preto
(ou "O pior texto de cinema que já escrevi na minha vida")

O cigarro no canto da boca, o cabelo preto cobrindo as orelhas, o terno preto e a pistola automática 9 mm com um silenciador. O sorriso no canto oposto ao sorriso. Sarcasmo, satisfação, humor ou crueldade? Não se extrai nenhuma impressão homogênea dessa figura. Ele não representa nada, ele é só um personagem. Só um personagem dotado de um certo egoísmo que lhe dá um tempero muito mais marcante que o sorriso pasteurizado de um Flash Gordon, o peitoral projetado como um escudo de um Superman ou o olhar misterioso de um Batman.

Quentin Tarantino, Martin Scorcese, Brian de Palma, Rubem Fonseca, Alan Moore, Frank Miller, Guy Ritchie... todos eles ajudaram a construir um conceito novo de herói. Até algum tempo atrás seus personagens poderiam ser jogados em uma caixa com uma placa dizendo “ANTI-HERÓIS”. Mas se olharmos dentro deles veremos algo muito mais rico que um herói ou um vilão (ou até mesmo um anti-herói). Veremos indivíduos cheios de texturas e nuances, com uma complexidade intrincada e multifacetada.

São heróis! São heróis por se encontrarem acima da mediocridade da vida cotidiana. Habitam um mundo fantástico de chefões do crime onipotentes, prostitutas charmosas, assassinos austeros e taciturnos, traficantes que passeiam por qualquer parte da cidade. Um mundo em que a palavra “poder” significa mais que dinheiro, influência e status. O poder e a decadência se confundem neste mundo.

Tem poder quem pode oprimir. Não sei se algum autor disse isso, mas acho que podemos partir desta crença. No capitalismo quem tem capital pode oprimir, logo tem poder. No comunismo quem fazia parte do corpo burocrático podia mandar seus ”camaradas” para os gulags, logo podia oprimir, logo tinha poder. É um mecanismo muito simples. Neste universo imaginário que estamos tratando quem tem poder? Os chefões do crime, os capos da Máfia, os traficantes graúdos. Não importa. O poder aqui vem de uma fonte sombria e maldita. O poder não é vindo de um deus, de um pedaço de planeta ou de uma porção. O poder vem da droga, das armas, dos contatos, das alianças e da intriga. Algo bastante possível e tangível, mas não para a maioria da humanidade. É como se nós, meros mortais, não fossemos convidados a participar deste universo fantástico exatamente por não sermos fantásticos. O poder neste mundo não é bom nem ruim, é apenas poder. A origem desse poder não o caracteriza de forma alguma, tampouco sua finalidade. A única razão do poder neste mundo é a satisfação de quem o tem: seja disparando com uma escopeta no peito de um inimigo ou deitando na cama com a mulher amada (geralmente bem longe de ser uma donzela). Mais humano impossível, talvez.

A honra também se encontra embaçada e mal definida neste universo. O bem e o mal não possuem um contraste preto no branco, mas sim uma infinidade de matizes como o é na “vida real”. O personagem não mata o outro em nome da liberdade, da fraternidade ou da justiça. O personagem mata o outro porque é ele ou o outro. O personagem é marcado por um egoísmo tão humano que analisa-lo de maneira maniqueísta é pedir para se perder em um labirinto moral. Veja a protagonista de Kill Bill: ela caça aqueles que a fizeram sofrer, a deixaram em coma e a separaram de sua filha. Ela os caça por justiça? Não, ela os caça para satisfazer seu sentimento de raiva.

Por que não são heróis? Seus feitos são extraordinários, possuem uma certa honra (mesmo que embotada por um sentimento de egoísmo) e se sobressaem entre os outros. Ainda no exemplo de Kill Bill. Não poderia a sua alta perícia com armas ser comparada à força de Hercules. Assim como este fez seus 12 trabalhos, a outra passou por provas extraordinárias? E sua espada Hatori Hanzo, uma arma perfeita acima de todas as outras espadas, não poderia ser comparada ao escudo de Atenas com o qual Perseu matou a Medusa?

Caminham sobre a Terra como semi-deuses cobertos por uma aura de individualismo. Acima dos caixas de banco, atendentes de drive-thru, funcionários públicos e executivos. São donos do próprio destino e dos próprios infortúnios. Por que não são heróis? Por serem humanos?