segunda-feira, agosto 16, 2004

Os Churrascos do Tio Paulão

Aquele era o meu Tio Paulão! Todo churrasco de família ta lá o Tio Paulão: camiseta regata, “shorts” e latinha de Skol na mão. Ele vinha e abraçava seus sobrinhos.

“Eita! Homão grande esse aqui, hein! Terror das ‘menininha’!”, e desferia dois tapões nas costas da gente. “Firme! Firme!”, dava uma risada arranhada pelo Marlboro seguida de um gole na lata de cerveja ou uma beliscada na picanha recém-tirada do fogo. Sentávamos todos à mesa. Na mesa a conversa geralmente começava com algum assunto de família. “Não-sei-quem engravidou, não-sei-quem vai casar, não-sei-quem tá doente... “

Mas em algum dado instante do falatório alguém fazia um gancho para algum assunto fora da família, geralmente “a-capa-da-Veja”, “a-manchete-da-Folha” ou “a-notícia-do-Jornal-Nacional”. Era nessa hora que Tio Paulão nos deliciava com suas palavras. Tio Paulão era “doutor” e sabia das coisas. De aritmética a propulsão de foguetes estava gabaritado para opinar veementemente sobre tudo! “Esse seu professor da faculdade tá errado! Esse povo de universidade não sabe nada da vida!”. Por mais errôneos ou insensatos que parecessem ser seus argumentos, Tio Paulão está sempre certo porque afinal você está na casa do Tio Paulão que foi comprada com o dinheiro que ele suou para conseguir na firma que ele tem!

A firma! A firma era mais que o “ganha-pão” do Tio Paulão, era quase a epifania que ele teve para usar como alegoria em 70% das discussões que ocorriam nos churrascos em sua casa. “Essa coisa do orçamento, veja bem: eu tenho uma empresa e ela tem um orçamento...”, e dá-lhe o Tio Paulão a solucionar em dois cigarros e 3 latas de cerveja o problema da dívida externa brasileira ou a questão diplomática entre o Mercosul e a União Européia.

Pobre Tio Paulão! Tinha seus churrascos como abolidos por meus primos mais “moderninhos” como ele dizia. “Eu não sou racista! Eu nunca bati em preto!”... “Eu não sou machista! Eu nunca bati na Solange!”... “Homo o quê? Que é isso? Se o sujeito quer ser viado, que seja viado! Mas com as nega dele!”. Era o que Tio Paulão falava quando ouvia o mínimo sinal de protesto. “É por isso que o mundo tá essa pouca vergonha! Porque ninguém respeita ninguém mais! Tá todo mundo sem prumo na vida!”

Tio Paulão tava sempre certo! “Bandido tem que morrer!”, “Essa coisa de mulher ficar abrindo asinha falando que dá na TV não ta certo! Mulher tem que saber se portar!” e (a melhor de todas) “Essa história de cigarro, cigarro... Catzo! Eu fumo desde os quinze anos e nunca tive problema! É burrice essa história de cigarro faz mal! Esses cientista fazem as pesquisa tudo errada, tudo tendenciosa! (falava Tio Paulão, esbanjando liberdade poética abolindo o plural)”. Essa última era a melhor de uma forma triste: era a única que eu teimava (da maneira mais branda possível) com meu tio. Gostava dele e foi muito ruim vê-lo sendo enterrado por conta de um infarto. Tio Paulão morreu e os churrascos na sua casa não são os mesmos. Paulinho não fuma, bebe Kronenbier, só gosta de carne bem passada e (principalmente) detesta discussões.

Tio Paulão se foi, mas me encontro com ele todos os dias. “Ei guri! Olha aqui! Olha esse safado aqui: foi pego roubando a casa de uma família! Ainda bem que o pessoal da “dê-pê” pegou o danado pulando o muro! O pessoal da “puliça” já deu um trato nele olha aqui!”, “Dá uma olha nisso aqui, filho! O sem-vergonha fez a menina de boba! Iludiu a menina! Se aproveitou dela! Engravidou ela e agora não quer assumir a criança!” e “Mas é uma sacanagem! A dona dá pra todo mundo... é uma safada... e agora quer que o pobre coitado pague a pensão do filho que ela nem sabe se é dele!”. Lá estão os novos Tios Paulões. Vestidos de camisa social e gravata (uniforme da firma do Tio Paulão), a nova geração propaga pela televisão “a vida como ela realmente é”... assim como meu Tio Paulão gostaria de poder fazer!

Certamente Tio Paulão era o típico reacionário casca-grossa (por mais que dissesse que era contra a ditadura) que se encontra em muitos churrascos, mesas de jantar ou salas de escritório. Um tipo comum, fruto de uma criação X e de uma educação X que não é mérito nosso julgarmos (lembre-se da máxima da tolerância?).

Mas a nova geração, não há como negar, pega pesado saindo da sua sala de jantar para a sala de jantar de um cidadão que sofre de uma carência de valores e de identificação. Pegam pesado também com um arsenal persuasivo que vão da fabricação de uma figura paternalista que às vezes beira o caudilho (não é de se espantar que muitos Tios Paulões saiam a vereador, deputado ou prefeito) até a encenação, alusão ou até difusão de imagens ou fatos chocantes e escabrosos. Esses programas são um misto de churrasco de família e show de aberrações!

O que fazer? Regulamentar uma espécie de censura e controlar o conteúdo desses programas? A palavra “censura”, mesmo em suas formas mais amenas, é motivo de pânico e alvoroço. Seria muito fácil (e legitimo até) expor os entusiastas de uma censura a esse tipo de programas advogando lugares-comuns (o que aliás está bastante presente no discurso dos Tios Paulões). De uma maneira torpe (e ao mesmo tempo singela até) os Tios Paulões utilizariam a máxima da tolerância. E estariam certos: coloca-los no banco dos réus é tomar o lado diametralmente oposto da corda, o lugar dos politicamente corretos fundamentalistas...

terça-feira, agosto 03, 2004

O mito da piñata

Em um galpão escuro estavam três homens: um executivo, um estudante universitário e um jornalista. Os três homens estavam munidos de pedaços de pau e sobre suas cabeças pairava uma piñata colorida, feita de papier-mâché e coberta de brocal, lantejoulas e todas aquelas coisas que as professoras de primário adoravam colocar em coisas com papier-mâché.

Não importava como era a piñata, afinal os três homens estavam vendados e embriagados de tequila (o estudante universitário ficou nesse estado apenas depois que tomou duas vezes a quantidade que o executivo e o jornalista tomaram juntos). Do jeito que estavam, poderia ter um céu de piñatas sobre suas cabeças que eles não notariam.

Trôpegos, levantavam seus pedaços de pau e davam golpes quase patéticos que geralmente apenas atingiam apenas a massa de ar que os rodeava (quando não acertavam acidentalmente uns aos outros). Depois de um tempo o executivo perguntou:

_ Alguém tem alguma noção de como arrebentar uma piñata?
_ Pô! Aí! Não sei cara... não sei nem o que é uma piñata! Pintei aqui só por conta da birita grátis! - respondeu o astuto estudante universitário
_ Pelo o que eu sei as piñatas são animais feitos de durepox. É uma expressão típica da cultura norueguesa, daí o fato de dentro dela haverem quibes! - respondeu eloqüentemente o jornalista.

Passaram mais algum tempo. O torpor da tequila já estava baixando, dando lugar a uma náusea banal. Apesar do incômodo enjôo os homens agora podiam ter um mínimo de senso de direção. Mesmo assim, suas tentativas de acertarem a piñata eram praticamente infrutíferas.

_ Meu Deus! Se pelo menos eu tivesse algum consultor, tudo seria mais fácil! Era só eu anotar tudo o que o consultor dissesse e fazer ao contrário!- reclamou o executivo
_ Putz, véi! Ah, nem! Mó cansera aí, ó! Caraí! - discursou efusivamente o estudante universitário
_ Acho que basta ficar andando em uma só direção até tocar a baqueta na piñata! - disse de maneira fria e calculista o jornalista. Pouco tempo depois acertou um golpe certeiro em algo. Era a cabeça do executivo.

O executivo levantou-se com uma grande dor de cabeça. Os outros dois ainda tentavam achar a piñata perdida na escuridão de suas vendas. O executivo, então cheio desta insólita situação, resolveu tirar a venda e acertar a piñata.

_ Acertei! Acertei! - gritou o executivo. Enchendo a mão com os mais diversos doces. Doces de todos os tipos: de goiaba, de marmelo e de batata doce. Doces embalados rusticamente em pedaços de palha, doces envoltos em celofane colorido e doces embalados em papel manteiga.

O universitário notou o que acontecera (afinal pensara em fazer a mesma coisa enquanto o executivo jazia inconsciente no chão do galpão), mas não protestou. Apenas pegou um doce da porção que havia dentro da piñata recém-quebrada, colocou na boca e se calou. (já havia entornado tantas garrafas de tequila que seria no mínimo insensato reclamar os doces do executivo!).

O jornalista deu os parabéns para o executivo e discursou sobre a falta de homens de visão que há neste vasto país. Pegou um doce e mordeu. Olhou de maneira confusa para os dois homens e exclamou:

_ Nossa! Nunca tinha visto quibe doce!