segunda-feira, dezembro 13, 2010

Os Deveres da Deriva
Mais uma obra da Escola Risperidona de Literatura

Já era o segundo dia de nossas desgraças e as moringas estavam abaixo da metade. O pirata maldito havia nos colocado naquele apuro sem horizonte. Acreditou que voaria sobre as águas com o lastro oco com seu galeão. Quis fazer comércio rápido enchendo seu navio de especiarias, artefatos e outros piratas tão ambiciosos e ágeis quanto ele. Uma tripulação sempre disposta a repelir um saque. Cérberos bípedes do mar que trariam o inferno a qualquer corsário para assaltar seus tesouros, suas almas, seus escalpos e as bocas que beijavam a bunda de uma coroa qualquer. Os ratos pularam todos do barco e seguiram a tradição deixando o capitão no navio. Mas este resolveu dividir comigo sua maldição. Pegou-me pelo ombro e a tenacidade de seus dedos nodosos me aparou a ponto de paralisar-me.



"Fica, menino! Você é meu ou te mato!" - o velho falou com os olhos arregalados mostrando nos cílios a conta de teus assassinatos e a proscrição de tua índole insana. Ele continuou segurando meu ombro enquanto xingava sua tripulação calhorda. O galeão inclinava-se indo a pique e sua mão já não se agarrava ao meu ombro, mas procurava um equilíbrio frágil. Quando o chão ficou íngrime encostamos nossas costas na madeira. Nesta hora eu rezei e fechei os olhos. Só lembro de sentir meu corpo cair de mau jeito na água. Só a imagem que veio depois de minha prece que me acolhia do terror foi a do mastro do navio apontar o céu, como se fosse o dedo do velho praguejando as nuvens que já haviam se desfeito.



O navio afundou e logo retornou parcialmente num movimento pesadamente gracioso como o rabo de uma baleia que se revela à tona. O velho estúpido vedara seu barco à perfeição. Além disso havia feito a nau com um lastro maior. Acreditava que diminuindo a imersão do calado com o mar faria o barco flanar pelos oceanos. Sua engenharia exdrúxula acabou fazendo do calado cortante a nossa ilha, o porto seguro onde o velho resmungava os tesouros gastos para mandar fazer tal embaração. Xingava o navio e a embarcação. E neste palavrório consumiu-se nosso primeiro dia de náufragos. O velho praguejou tão vorazmente que acho que as próximas cinco gerações de seus traidores nasceriam com lepra só por consideração por parte de Deus e do Diabo.



“Vê alguma península? Algum porto?” – era o que eu perguntava ansioso e desesperado naquela manhã. Só depois, quando finalmente em terra e muitos anos depois, notei que talvez nunca tenha dado um bom dia sequer ao velho.

“Vejo, vejo sim! Vejo Sagres, Córdoba, Trípoli, Ancara...” – ele prosseguia olhando o horizonte sem notar minha expectativa dissolvendo em meu rosto. Ele parecia saber o tempo exato de dar com a minha cara desolada para prosseguir me olhando – “...Estocolmo, Paris, Xangai, Nairobi, Goa, Moscou, Tóquio e a casa da senhora sua mãe. E lá me fartarei nas despensas e nas carnes da tua mãe. Mas antes vou degolá-lo, para que não me enfades durante o coito!”



Era como se desde o início ele tivesse me condecorado primeiro imediato e fiel companheiro de tua desgraça. Eu e ele naquela nau absurda com seus mastros, velas, leme e tudo mais submerso, enquanto o casco reluzia lustroso à luz do Sol. Se ele estava desolado, eu era apenas o cachorro sarnento com quem ele resolveu passear por aquele inferno. O infeliz a quem ele ordenava:



“Mergulha em meu galeão e traga uma tina da cozinha. Depois disso traga-me uma caixa de lentes. Está no depósito de mercadorias junto com outras coisas vindas de Amsterdã.” – sua voz era clara apesar do tom rasgado conseguido ao custo de tuas pragas berradas. Quando eu me preparava para pular dentro da água ele prosseguiu – “Não quebre as malditas lentes. Traga a tina primeiro. Se quebrar estas lentes, juro que te faço carregar este galeão saltimbanco a nado puxando-o por suas tripas!”



A tina foi mais difícil de levar que as lentes. A cada braçada ela parecia encher-se de água. Tive que guiá-la rodando-a pela água. Quando cheguei ao nosso insólito refúgio o velho me vem com uma nova.



“São duas tinas. Trate de achar uma menor que esta. Se não for possível pode pegar daquelas tigelas exuberantes. Aliás, isto seria perfeito! Pegue uma tigela de cristal bem grande. A mais bonita que tiver!” – era só o que me faltava: o velho enlouquecer e resolver inventariar item a item seu estoque falido e molhado. Peguei a tal tina e a levei sobre a caixa de lentes. Queria terminar minhas tarefas de uma vez.



O velho ficou feliz quando viu a tigela e correu para pega-la e colocar dentro da tina. Enquanto isso eu boiava apoiando a caixa de lentes.



“Ora, vá logo com isso! Arraste a caixa pela quilha na proa até aqui em cima com todo cuidado.”



“O navio está de cabeça para baixo, pirata demente! Onde é o raio da proa?”



“É onde você irá apoiar esta caixa e arrastá-la até aqui em cima.” – disse ele calmamente ignorando minha insubordinação. Na mesma calma prosseguiu. – “E se algo acontecer a estas lentes lembre-se que carregarás este galeão a nado com suas tripas como rédeas.”



“Ainda não achou a proa? Com que cabeça entrou para minha tripulação marujo! Nade! Preciso destas lentes.”

Arrastei cuidadosamente a caixa pela quina da quilha. O velho esperava tal uma criança. Seus olhos azuis brilhavam e todas as rugas de sua cara transformaram-se em vincos cômicos e joviais. Quando viu a maior lente do conjunto intacta, festejou e pulou perigando quebrá-la. Correu até a tinha cheia d’água e colocou a lente cuidadosamente de moda que a barriga de vidro ficasse no rumo da tal tigela de cristal.



O velho me pegou forte pelos ombros e temi que ele me beijasse ou pedisse que o sodomizasse frente àquele amontoado quase alquímico seguindo o sortilégio de algum ritual macabro. Eu confesso que duvidava daquela maquinaria estúpida e simplória. Mas ele sorria feliz com seus dentes escuros e trincados.



“Nade até meus aposentos, marujo e pegue uma roupa! Agora sempre teremos água...” - duvidei do produto de seus caprichos, mas não queria contrariá-lo naquele ponto. Resolvi espezinhar.



“Quer que eu pegue os talheres para comermos água?” – ele me deu um tapa jocoso na nuca e retrucou rápido.



“Claro que não, imbecil! Traga talheres de peixe, pois vou pescar!”



“Vai pescar? Com que isca?” – eu já soava vil e sarcástico quando ele me tomou a mão de uma vez e pressionou-a contra o casco reluzente ao Sol.



“Com dedos, ora?” – ele separou habilmente cada um de meus dedos usando sua mão como uma luva de ferro. Enquanto eu esperneava e me debatia desesperado, ele pontuava. – “Não sabe das histórias de piratas sem olhos, pernas, braços e até bundas? Como não sabe disso e entra para minha tripulação?”



O velho pirata me soltou tão rápido quanto me dominou. Seu rosto, antes o de um valentão a acuar seu paspalho predileto, agora tornava-se terno como de um tutor.



“Como entras para um corpo de piratas, mesmo que para comprar e vender mercadorias, sem estar disposto a perder uma parte de teu corpo? Como fugiria das algemas?” – estendeu seus quatro dedos e cortou seu mindinho na altura da unha. – “Agora vá pegar roupa e linha em meus aposentos. Vamos comer e vamos beber!”



Senti um ímpeto de alegria em sintonia com o velho louco. Aquele escroque algum dia da vida já deve ter arrancado o próprio polegar por algum motivo muito bom. Ele me segurou pelo ombro e mandou que eu esperasse. De relance, tirou alguns fios de meu cabelo em um movimento rápido de braços e dedos que só tocaram os fios na hora de colhê-los.

“Esta é tua parte nesta campanha!” – falou profundo e sério – “Reze para que seja útil! Ou você não passará de carne e ossos para os tubarões quando eles vierem...”



Mergulhei para pegar as roupas. Dentro do camarote de capitão, o velho tinha a paisagem de seu passado de glórias para cegá-lo de qualquer rota. Armaduras, espadas, mosquetes ladeavam baús abertos com um sem número de dobrões, libras e tudo que não fosse papel de título com tinta já dissolvida pela água do mar. Tudo isto no teto de seu quarto para ele deitar bêbado em sua cama afixada e afogar-se frente sua glória de saqueador.



Quando saí dos aposentos com as roupas, o velho apareceu como um fantasma submarino no centro da meia-nau invertida. Fez sinal para que eu emergisse. Subimos juntos pelo bombordo e depois tomarmos ar ele pegou em meu ombro eufórico outra vez.



“Dentro de meu camarote há um laboratório. Veja o estado dele e traga à tona todo frasco que estiver arrolhado. Procure também meu frasco de nanquim e minha caneta que deve estar por perto da cama. E procure nas estantes por canos grandes de bambu. Eles estarão muito fortemente vedados. Se você for estúpido de abri-los, eu juro empalá-lo com os pergaminhos que estão dentro dele. Agora vá!”



“E as roupas?” – perguntei exasperado pelas coisas a fazer organizando em minha cabeça as idas e fôlegos de cada coisa.



“Ou você me passa elas agora ou as faz de trouxa para pegar as coisas. Você sabe pelo menos ser esperto ou vive de questionar minhas ordens. Desça, marujo!”



Fui mais uma vez ao camarote e vi o tal laboratório. As peças e vidrarias todas flutuavam muito próximas umas das outras e uma nódoa vermelha as aglutinava. A água por perto era quente e ardia. Coletei os frascos segurando um florete pela lâmina e fazendo o punho da arma como concha para abrigar aquelas vidrarias auspiciosas. As outras coisas estavam quebradas ou imersas naquela mistura infernal.



Recolhi tudo em um fôlego só e levei embalado em uma camisa de tecido grosso. Não queria subir e ter mais coisas a resgatar da nau inversa. Deixasse o velho me pedia um canhão.



“Pegue isso rápido antes que afunde!” – gritei a todo pulmão, soltei o embrulho e mergulhei. Agora eu procuraria o nanquim e a pena, uma vez que segundo o velho os canudos estavam na estante. Pensava comigo se ele iria iniciar suas malditas memórias – “Éramos só eu e um marujo do qual a mãe pretendo profanar” – ou se iria começar a desenhar símbolos malignos para invocar um demônio do mar que lhe deva favores ou que aceite almas rasas e perturbadas.

A pena era colorida e extravagante assim como o frasco de nanquim com seu vidro de formato e aspecto que remontava aos mouros e sarracenos.



Ambos brilhavam laminosamente, quase óbvios naquela ecatombe. Embolei-os em outra camisa de tecido forte para joga-los em segurança sobre o maldito calado hermético. Voltei para pegar os tais canudos. Por um momento pensei em avaliar a possibilidade dos pergaminhos estarem intactos. Eu poderia ter verificado a vedação dos canudos com a boca. Mas meu amor por esta boca minha bem como por meu estômago e tripas me impediram de arriscar-me ao tal empalamento.



O velho me ameaçava e falava de minha mãe. Se eu já não tinha muito respeito por aquele pirata depravado, já estava disposto a torna-me um insubordinado. Levei os tais canudos a tona disposto a jogá-los ao pé do velho e falar para aquele insano umas poucas e boas.



Daí a imagem o peixe enorme me calou. Com um pedaço de seu dedo mínimo o velho havia pego um peixe enorme. Exposto ao sol e aberto, a criatura ocupava uns 4 palmos da quilha. O maldito cortava os pedaços e colocava em uma tigela de cristal. O cretino provavelmente foi até o depósito enquanto eu catava seus frascos.



Enquanto dilacerava nossa refeição, o pirata começou a perguntar sobre tais e tais essências, poções e venenos que estavam em seu laboratório e eu não havia recolhido. Eram poucos e eu havia pego todos que pude recolher. Todos os outros haviam se quebrado e além disso àquela época eu não sabia ler.



“Pois vamos descer juntos e ver o que você aprontou em meu laboratório!” – eu estava pronto a matá-lo caso ele tentasse primeiro. Submersos estaríamos pau a pau. Seus braços e pernas podiam ser como gravetos, mas meu fôlego era o de um menino que poderia fugir daquele inferno a nado se tivesse me dado isso na cabeça.



E então descemos até seu camarote para ver o estado do tal laboratório. Quando chegamos lá o velho doido não se descuidou em enfiar sua mão que ainda sangrava na nódoa satânica. Vi seu sangue ferver e coagular e o velho reagir efusivo. Cutucou-me e sinalizou para subirmos.



“Vá até a copa, pegue um caldeirão. Recolha aquela mistura vermelha toda e assim como fez com a caixa de lentes vá até a proa. Lá eu te ajudo a subir tudo!”



“Não vou chegar perto daquele sangue de Belzebu que você invocou para se amaldiçoar!”



“Que seja então, seu estúpido! Procure ferramentas para serrar o mastro principal pouco abaixo do torreão.”



“Quer afundar teu galeão de vez, velho louco? Em quantos problemas queres se envolver para que eu comece a apiedar de ti?” – o velho ficou furioso e vi que ali, fora d’água ele poderia muito bem estocar-me nas axilas para observar-me morrer.



“Escute, marujo! Eu não preciso de tua piedade e muito menos da tua vaga noção de ser um homem do mar. Nadas muito bem e tens fôlego. Morto ou esquartejado você ainda não tem nenhuma utilidade para mim. Então cala-te e faz uma destas duas coisas: ou recolhe a mistura de meu laboratório com um caldeirão ou serra meu torreão. E esta é a única vez que lhe dou alguma opção que não seja a morte ou a profanação do corpo de tua mãe!”



Fechei a cara e fui serrar o mastro. A madeira era rígida e a água do mar tornou a tarefa ainda mais árdua dando mais aderência da peça à serra. Depois de serrar três vezes eu subia à tona para tomar ar e voltava. Entendi o castigo do velho. Maldito pirata cheio de engenhosidades para afirmar sua autoridade vil e corrupta. O galeão de teus olhos entornou antes mesmo de tua partida na hora em que o concebeu em seu delírio de grandeza de pirata. Teu plano de tornar-se um homem da burguesia e da corte falhou pelas companhias eleitas para sua jornada. E por tudo isso o culpado seria eu pelo azar da sobrevivência e pela burrice da lealdade.



Trazer a peça para a superfície não foi tão difícil quanto a lida que foi para removê-la. Levá-la para cima do casco seria um inferno se o velho não tivesse me ajudado com uma corda e um sistema de roldanas amarradas a cada lado do navio.

Enquanto eu estive naquela lida ingrata o velho havia trazido quase todas as roupas do navio. Parte delas calçava o caldeirão onde estava sua porção diabólica. A placa de uma armadura tampava a panela e o vapor a esquentava a ponto de possibilitar o preparo do peixe. A carne branca foi temperada com as ervas e vinho que o velho pegou de um dos barris do navio ou do alforje de alguém morto.



Fui em direção ao peixe notando pela primeira vez naquele dia a fome que eu sentia. O velho ficou entre eu e aquele banquete mínimo e necessário.



“Antes de comer quero que você pegue banha na cozinha, piche e graxa no depósito.” – a fala era calma apesar de séria. Como a de um professor depois de ralhar com seu pupilo. Ele me ofereceu água e eu neguei racionando como fazia já completariam cinco dias. – “Quer tomar da tigela só de curiosidade, marujo estúpido?”



O velho tirou cuidadosamente a lente de cima da tina e tirou de lá a tal tigela. E eu tomei a água sem gosto e morna daquela peça que provavelmente adornaria a mesa de casamento ou o batizado de um bem nascido. Eu, miserável e sedento. Quando ajoelhei para descansar e apiedar-me quieto de minha má sorte o velho me cutucou com seu dedo sangrando.



“Trabalhas até o Sol cair, marujo! Sois minha tripulação. Vá pegar as coisas que mandei trazer-me!”



Fui pegar as tais coisas e quando voltei o velho estava agarrado ao pedaço do mastro que tirei da água. A estrutura pendia de um lado para o outro forçando o velho ao sabor das ondas enquanto um sistema de cordas que usava o leme e o talha-mar como pontos de apoio lhe dava alguma estabilidade. A estrutura era calçada por outro amontoado de roupas.



“Pegou o machado que te pedi?” – o velho chegou por trás sorrateiro e mandão.



“Não pediu machado algum!”



“Então não me lembre disto e vá pegar, marujo estúpido!” – fui pegar o tal machado já menos ofendido pelo jeito burlesco daquele velho.



Quando cheguei o velho levantava o mastro e o cesto com tremendo esforço abraçando o construto. No casco do navio estava o amontoado de roupas formando um anel embebido em piche.



“Dê um golpe só aí onde está marcado!” – o pirata louco marcara seu casco perfeitamente vedado com um “X”.



“Agora estás louco mesmo! Eu não vou fazer isto!” – eu disse levando minha mão à pequena faca que eu tinha disposto a mata-lo ali para o bem de ambos.



“Marujo desgraçado e ignorante! Bata nesta marca que eu tampo com o mastro. Perturbe meu comando mais uma vez e eu solto isto tudo de uma vez. O mastro vai quebrar o casco, romper o lastro e daí sim meu galeão irá naufragar de uma vez. Bata com o machado na marca que fiz ou eu afundo este navio e nado até a costa para salvar minha pele, e eu já fiz isso. Juro que pensarei no que vou fazer com toda sua família enquanto a caço até o inferno!”



Assumo que foi por medo. O velho falou de dentro de seus anos e agruras e evocou dentro de mim o temor do menino que eu era. Bati na tal marca e ele soltou o mastro. Num golpe muito rápido de astúcia diabólica ele abraçou a madeira em um ponto onde a estrutura sobressalente rompia o casco, mas não violava o lastro. A roupa que rodeava a marca aderiu à secção do mastro à medida que o mastro afundou na fenda preenchendo os vazios entre este e a madeira onde sobrevivíamos.



O velho ordenou que eu comece e calasse a boca. – “Enche tua boca de comida!”. – Quando eu estava me fartando e já ignorando toda má sorte e trabalho, o velho suspirou e um semblante preocupado e desolado cobriu seu rosto enquanto ele se esforçava em fazer o mastro não ceder uma polegada sequer.



“Se não comermos frutas dentro de um mês estaremos cegos, loucos, preguiçosos, desdentados. Ou isto tudo de uma vez ou cada uma dessas coisas dia a dia...” – o velho suspirou de novo – “Da última vez que naufraguei eu estava com uma mochila cheia de mangas e bananas que peguei na Índia. Daquele navio sobrou apenas o talha-mar ornado com uma sereia muito bela e de madeira muito perfumada. O único sobrevivente além de mim era um marujo um tanto mais forte que tu. Era também pouco menos esperto e pouca coisa mais intransigente. Respondeu-me de sopetão dizendo que eu era um velho pirata de merda. Abri sua barriga e fiz tuas tripas de rédeas. Voltamos a Goa em três dias. Passei a viagem apoiado nos seios da minha sereia e até fiz amor com ela, acredite!” – o semblante do velho retomou seu sadismo velhaco e ele sorriu – “O marujo cretino eu mandei que colocasse as tripas na cabeça e as escondesse com um turbante. Vendi-o a um paxá como eunuco. Ele até tinha ficado mais dócil durante a viagem. Mas se eu não o fizesse eunuco não teria o suficiente para voltar para a Europa...”



Eu sentia meus olhos arregalados como se minhas pálpebras estivessem com câimbras. Eu era todo ouvidos ao velho. E temia mais do que nunca pela minha vida na calmaria daquela noite.



“Confesso que não vi a tormenta vindo. Que fiquei bêbado em meus aposentos brincando com meu laboratório crente no sucesso de achar a tal pedra filosofal. Não tenho idéia do lugar onde a nau virou e por enquanto nenhuma noção de onde estamos.” – seu ar era culposo e resignado. Ele contraiu os músculos todos de seu corpo como se ele fosse não o homem que sustentava aquela coisa toda, mas o nó que atava tudo.



“Creio que o sereno desta noite e o sol de amanhã enrijeça o selante que improvisei. Da última vez que naufraguei eu não tinha mapas, agora não tenho frutas. A partir de amanhã tua única tarefa será ir ao meu navio invertido para estender as velas. Quero ver se de cabeça para baixo a nau viaja pelas correntezas. Farás isto todo dia. Enquanto a mim eu estarei no cesto descansando e lendo meus mapas. Agradeço teu fio de cabelo. Montei um sextante tosco com ele e alguns ossos de peixe. No mais desço quando bem entender. E não me perturbe o sono ou mato teu pai só para me casar com tua mãe e te fazer homem! Você é fraco demais para levar este galeão com as tripas!”