domingo, dezembro 17, 2006

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Acho que eu tinha uns dez anos. Doze no máximo. Estava numa quermesse ou coisa do tipo. Na verdade era um daqueles parques de diversão vagabundos que passam de cidade em cidade. Comprei 30 fichas para brincar no stand de tiro ao alvo. Naquela época eram cruzeiros, mas o que eu sei é que era o dinheiro todo que meu pai tinha me dado para brincar.

Quando consegui a bola de futebol que estava de olho vi que ainda tinha 22 tirinhas rosas de papel ordinário comigo. Pareciam pedacinhos de papel higiênico. Perguntei se podia trocar e o homem da barraca disse que não. Chamei meu pai. Ele disse que eu me virasse e que não tinha me mandado gastar todo o meu dinheiro em um único brinquedo.

Peguei a espingarda de pressão e continuei no stand. Quando faltavam oito das malditas tiras eu já havia conseguido três ursos de pelúcia, quatro carrinhos vagabundos, um prêmio que hoje seria de uns 50 reais e uma carteira de cigarros que viria a ser a minha primeira.

Saí do stand nauseado. Andando eu ainda sentia a arma apoiada no meu ombro e o gatilho no meu dedo. Dei as tiras restantes para um amigo que nem era tão meu amigo assim. Era apenas a primeira pessoa a quem eu achei cabível dar aquelas tirinhas de papel.

Sentado no banco de trás daquele carro e olhando meu alvo nos olhos através do retrovisor era exatamente daquele jeito que eu me sentia. Era como se eu tivesse comido milho cozido com manteiga e tudo viesse à minha memória.

Os olhos dele desviavam dos meus. À medida que nos afastávamos do Plano Piloto sua feição ficava mais fechada ainda. Quando passamos por Sobradinho perguntei se podia fumar no carro. O cheiro de cigarro era forte. Azedo, amargo, o cheiro de cigarro e suor quando se misturam denunciam a presença de qualquer fumante. Ele disse que não. Parecia ser um sujeito que estava muito puto por achar que dali a algumas horas seria humilhado por um bandido medíocre e deixado no meio do nada sem carteira, celular e muito menos seu carro que nem era lá aquelas coisas. Mas poucos homens têm coragem de ao menos sussurrar um “não” quando estão sozinhos com alguém armado. Respeito-o por isso.

Guio-o até uma fazenda para lá de Planaltina de Goiás. Entramos em uma trilha que acabava próxima a um córrego aonde a terra é mais fofa. Falei para que ele saísse do carro. Perguntou se poderia aproveitar e mijar. Se fosse alguém que tivesse me causado asco eu teria lhe acertado a cabeça na hora em que ele estivesse se aliviando. Eu já fiz isso. Era um babaca que veio da Asa Sul até aquela mesma estrada de terra me perguntando por quanto eu não o mataria e falando que "cada homem tinha seu preço" e mais uma porção de baboseiras que parecia ter aprendido em algum workshop no meio do mato. Foi muito engraçado ver a cara daquele rato de escritório cair na poça do próprio mijo. Sim, eu me divirto com estas pequenas coisas. Não, não é nenhum tipo de "poética do assassinato" ou coisa do tipo. É só algo engraçado que eu contaria em um bar. Se fosse a coisa mais normal do mundo é claro. Além disso, não era o caso de eu atirar nas costas do cara enquanto ele mijava. Era só mais um pobre coitado que sabia muito bem porque iria morrer. Ou não sabia. Foda-se...

Quando ele fechou o zíper e voltou-se para mim pude ver na minha frente o stand de tiro. Era mais um pato para acertar. Não que eu seja impiedoso, mas não o deixaria fugir e nem pensei em tal hipótese. Não sei se ele sabia que seria morto ou não, mas ele me encarava com o queixo levantado.

O tiro acertou aquela famosa região pouco acima dos dois olhos mais ou menos entre as sobrancelhas. Bastante clichê na minha opinião, mas o que conta não é o tiro e sim a caçada. E talvez seja por isso que eu esteja começando a sentir náuseas. Ficar à espreita do alvo, abordar, levar o sujeito para um lugar ermo e enterrá-lo não era problema. Mas o tiro... era sempre a mesma coisa. Como um carimbo.

A pá estava escondida entre as folhagens. Cavei a vala em pouco tempo, pelo menos para um fumante. Quando entrei no carro resolvi abrir o porta-luvas para dar uma checada. Uma carteira de Marlboro.

O filho da mãe tava para morrer e negava o prego do meu caixão. Dá vontade de rir dessas coisas!

domingo, julho 16, 2006

Manual básico

Seu corpo é basicamente formado por cabeça, barriga, braços, pernas, joelho, dedinho e cotovelo. Você só precisa se preocupar mesmo com barriga e cabeça. Braços, pernas, joelhos e dedinho são partes do corpo para se quebrar, torcer e topar em quinas de parede. Para isso existem os ortopedistas que são como os lanterneiros do seu corpo. A diferença é que eles não tem posters de mulher pelada no lugar de trabalho.

O corpo serve basicamente para andar, pegar coisas e comer. Basicamente. Mas você só pode fazer isso se estiver vivo. Se você estiver morto você pode pedir a ajuda de um médium. Mas poucas pessoas gostariam de emprestar o próprio corpo para outras pessoas. É como emprestar a cueca só que com mais higiênie (ou não).

Uma vez vivo você tem que passar por uma série de estágios. É como um programa de desintoxicação só que mais barato e geralmente sem crise de abstinência. Mesmo porque por melhor que tenha sido sua vida como feto não há como voltar para a barriga da sua mãe. E se você não estiver satisfeito o problema geralmente é seu. O nome disso é "vida", mas existem pessoas que acreditam que isso é apenas uma ilusão ou o sonho de um ser divino. Em todo caso seu corpo possue dedos, e esses dedos podem tapar seus ouvidos (também inclusos no corpo).

Primeiro vem aquela fase que você basicamente come e dorme. Você é de certa forma uma ameba e um gênio ao mesmo tempo. As pessoas à sua volta vivem para encher sua boca de papinha. É nessa época da vida que se criam os grandes ditadores. Você come e dorme e não faz mais nada. Basicamente você não entende nada então não há com que se preocupar.

Depois vem aquela época que você basicamente come, dorme e brinca. Aquilo é uma ilusão! Uma sociedade secreta de psicólogos colocam memórias alegres na sua cabeça para que você esqueça das vezes que eles mesmos ficaram te dando choques. Você não lembra, mas quando era criança e você ia a determinados lugares eles estavam lá para te dar um choque. Isso é para que dali a alguns anos eles possam ganhar dinheiro com as suas visitas ao analista.

Depois vem é a escola que é basicamente a versão original de tudo o que vem pela frente.

A pré-adolescencia está para a escola assim como o livro "Ligações Perigosas" está para o filme "Segundas intenções". É tudo tão chato quanto só que mais fútil. E você ainda tem a puberdade, que é uma coisa que faz você chegar ao ápice do seu ridículo. Sua voz, sua pele, seu gosto musical e seu hábito de passar a madrugada zapeando atrás de qualquer enquadramento por peitos. É tudo uma desgraça!

Os vinte anos são uma coisa estranha, principalmente se você mora sozinho. A primeira vez que você fizer uma "compra para a sua casa" você vai levar muito chocolate ou muita cerveja. Da primeira vez que você matar uma aula de faculdade você vai se sentir o Robin Hood dos trópicos. Os vinte anos são como a infância e a fase da escola só que sem os pais. Por algum motivo tudo fica muito monótono e você inventa de procurar trabalho.

Bem... é assim...

sábado, abril 22, 2006

Tateando a escuridão chamada intuição...

Tem uma hora na madrugada que a linha do horizonte se torna azul e pálida... como olhos cianofícios... a mancha se extende acima em um degradê passando por um violeta muito escuro até o preto...

Esta é minha hora favorita do dia...

THIS IS SO SISSY!

domingo, abril 09, 2006

O povo para o povo

Num sábado à tarde via televisão na casa de uns conhecidos. A falta de TV à cabo nos mantinha enclausurados em um ciclo onde mais da metade dos canais era evangélico, o que diminuía ainda mais as nossas opções. Acabamos exercendo nosso masoquismo assistindo a Globo, mesmo.

Ver televisão aberta e ir comer no shopping é a mesma coisa para mim. Quando vou ao shopping com fome eu começo a andar em círculos na praça de alimentação na esperança de achar algo que preste. Mas eu não me arrisco com a infinidade de fast-food’s de massas, de saladas e de comida japonesa. Para começar por eles terem senha (uma óbvia profanação do termo “fast-food”. Colocar senha em um lugar desses é praticamente assumir que a sua comida VAI demorar.). E em segundo lugar porque comida de shopping nunca é tão boa quanto em um restaurante. Além disso, comer no shopping para mim significa comer no Mc’Donald’s! O Big Mac é sempre o Big Mac em qualquer lugar do Brasil (a não ser que na Bahia a rede substitua o molho especial por vatapá).

Eu me lembro quando o Mc’Donald’s chegou a Goiânia. Isso foi no começo da década de 90 e eu tinha uns 8 anos. Mc’Donald’s era coisa para quem já tinha ido para Disney ou era filho de pais separados. “Fui nas férias para casa do MEU PAI em São Paulo e o MEU PAI me levou no MÉQUIDONALDIS!”. Existia algo naquela frase além do jeito entojado de falar “MEU PAI” e a questão de repetir o maldito “MEU PAI”. O MÉQUIDONALDIS era para poucos, os malditos filhos únicos de pais separados sabiam disso. Minha família é de São Paulo e eu já conhecia o Mc’Donald’s, o Bob’s e o Jack in the Box (e o sanduíche de rosbife perto do Mackenzie que era massa). E não é que eu esteja espezinhando os goianos desde a mais tenra idade (apesar de não perder a oportunidade). Com certeza os pentelhos brasilienses conheceram o MÉQUIDONALDIS no Rio de Janeiro. Antes dos pentelhos goianos, mas a antecipação não justifica a pentelhação. Pentelho é tudo igual, no Goiás ou no “DÊ-ÉFE”!

E quando chegou em Goiânia era uma questão de tempo que não fosse mais para poucos. E foi por isso que no dia da inauguração do primeiro Mc’Donalds de Goiânia o trânsito da Praça do Ratinho ficou intragável. Parecia que a cidade inteira tinha ido ao maldito Mc’Donalds. Pela primeira vez na vida eu xinguei as batatas mais crocantes neste quadrante da Via Láctea e o refrigerante de máquina na proporção mais perfeita entre xarope e água com gás que o homem já concebeu. Eu era uma criança e não sabia o que dizia. Estávamos indo para casa de uma tia e estávamos presos na frente do Mc’Donald’s lotado de carros entrando e saindo e fazendo uma bagunça no estacionamento da lanchonete e do Marcos (supermercado ao lado, para quem não conhece Goiânia). Quando chegamos à casa da minha tia ela havia saído. Foi ao Mc’Donald’s. Pela segunda vez na vida eu xinguei as batatas mais crocantes neste quadrante da Via Láctea e o refrigerante de máquina na proporção mais perfeita entre xarope e água com gás que o homem já concebeu. Mas eu era uma criança, e ninguém tinha celular naquele tempo (tirando o pai do primo de um amigo meu que morava em São Paulo, mas era mentira).

É natural: tudo que é para poucos começa a ganhar um brilho. O fetiche da ilusão da exclusividade. “Só eu e outros poucos podem comprar roupas da Daslu!”, “Eu sou um dos poucos que podem ter uma BMW!”, “Só eu e mais alguns escolhidos entendem esse filme iraniano chato pacas!”. É tudo a mesma coisa. A crença dos few-ones. Começou com os judeus e o reino dos céus e chegou aos nouveau riche e suas reproduções de Van Gogh na sala de estar.

Por algum capricho irônico do comportamento humano existe algo que até pouco tempo era o exclusivo do exclusivo dos mais ricos e sofisticados: gostar de pobre. Só os milionários montavam instituições filantrópicas e entre uma caridade e outra iam fazer um safári na África. Daí seus filhos passaram a ir para o continente mais ferrado do globo para ajudar a Cruz Vermelha, os Médicos sem Fronteiras e para viver lá junto à miséria expiando o pônei que ganharam aos 10 anos enquanto aquelas pobres almas passavam fome. E no lugar da porcelana Ming, dos cristais da Baviera e do Renoir os filhos dos ricos decoraram a mansão com todo tipo de artesanato senegalês, os talheres pitorescos feitos de madeira e uma reprodução enorme de uma foto de Sebastião Salgado. Nada era mais la creme de la creme do que a foto um miserável em preto-e-branco na sala de estar ou de um esfomeado na sala de jantar.

Aí a classe média, que estava atulhada de quinquilharia kitch, percebeu o que os ricos faziam de verdade. Uma versão mais estética do que social da guerra de classes então foi iniciada. O filho mais velho do engenheiro podia até fazer engenharia, mas se houvessem mais três filhos ao menos um faria sociologia, antropologia ou história (deve haver alguma estatística acerca disso). E os filhos da classe média descobriram as camisetas do Che, o Los Hermanos, o Pedro Almodóvar, a nouvelle vague, o cinema iraniano e culminaram no clímax da coisa toda: o cinema nacional. Paulo Francis falou nos primórdios que nada era mais classe média que Godard. Hoje ele diria que nada mais classe média que torcer por filme brasileiro no Oscar e votar no PT. Os filhos da classe mais alta já transcenderam o Waltinho (quer filho de banqueiro que goste mais de pobre que o diretor de “Central do Brasil”?) e já estão no maracatu e no bumba-meu-boi.

Mas para ver estas manifestações in loco fica muito caro para a classe média brasileira hoje em dia. Uma viagem de avião para o nordeste está pela hora da morte e os melhores hotéis estão sempre cheios de estrangeiros querendo ver miserável de perto. Então os filhos da classe média acochabraram. Bastou uma modernete em alguma coluna com pinta “alternativa” dar o aval que o funk carioca invadiu as boites. Fica bem mais barato pagar uma van para pegar um suburbano ali na “perí” do que trazer de avião um grupo de mamulengos diretamente de Olinda. Eu não sei quem começou isso, mas espero que tenha feito isso pelo humor da coisa. Se foi pode contar para todo mundo que a piada acabou. Nas festas nas universidades o tal do forró universitário impera. Forró universitário? Como assim? Existe uma teoria e um método do forró e eu não estou sabendo. Até onde eu sabia era só esfregação mesmo. Que tipo de acadêmico serei eu ignorando a cátedra do forró?

Agora o povo quer o que é seu: o povo também quer ver o povo. O pobre também quer fingir que é pobre. Não aquele pobre recalcado que vive reclamando. O pobre agora quer ter orgulho de não ter água encanada, ensino fundamental, asfalto e saúde. O pobre quer mostrar que ele não tem dinheiro para comprar um punhado de farinha de mandioca feito pelos descendentes do quilombo Kalunga por 20 reais, mas que ele pode ser pobre também.

Para o pobre não basta apenas ver as modelos-atrizes do “Caldeirão do Huck” rebolando ao som do funk carioca. Nem ver as aventuras de Laranjinha e Acerola, a versão do Vidigal de Tom Sawyer e Huckelberry Finn. Agora o pobre quer ver o Cledysson Ricardo cantando rap com os “chegado da quebrada” e a Clausidete botando as carnes para requebrar ao vivo com a Regina Case falando o quanto aquilo é lindo e puro. Depois do “bom selvagem” de Rousseau agora temos o “pobre bonito” da Regina Casé.

E se a Globo estiver certa! E se pobre vender mesmo? Assim? Em pleno sábado à tarde o suburbano deixa de lavar o Golzinho para ver suburbano passando na TV. Os patrocinadores comemoram e o feed-back é instantâneo. Para quem está desempregado é só ficar ligado: daqui a pouco rola um casting para coreografia de arrastão.

quarta-feira, março 08, 2006

O mito da praia

Um sábio foi à praia. Olhou para o mar e levou sua mão até a areia. Tirou grão a grão até que um único sobrasse na sua palma. Olhou atentamente o grão e contemplou o universo.

Um tolo foi à mesma praia. Olhou para o mar e correu para a água. Voltou molhado e rolou na areia. Levantou-se e gritou:

"Mãe! Eu sou um croquete!"

sábado, fevereiro 04, 2006

Homens de preto
(ou "O pior texto de cinema que já escrevi na minha vida")

O cigarro no canto da boca, o cabelo preto cobrindo as orelhas, o terno preto e a pistola automática 9 mm com um silenciador. O sorriso no canto oposto ao sorriso. Sarcasmo, satisfação, humor ou crueldade? Não se extrai nenhuma impressão homogênea dessa figura. Ele não representa nada, ele é só um personagem. Só um personagem dotado de um certo egoísmo que lhe dá um tempero muito mais marcante que o sorriso pasteurizado de um Flash Gordon, o peitoral projetado como um escudo de um Superman ou o olhar misterioso de um Batman.

Quentin Tarantino, Martin Scorcese, Brian de Palma, Rubem Fonseca, Alan Moore, Frank Miller, Guy Ritchie... todos eles ajudaram a construir um conceito novo de herói. Até algum tempo atrás seus personagens poderiam ser jogados em uma caixa com uma placa dizendo “ANTI-HERÓIS”. Mas se olharmos dentro deles veremos algo muito mais rico que um herói ou um vilão (ou até mesmo um anti-herói). Veremos indivíduos cheios de texturas e nuances, com uma complexidade intrincada e multifacetada.

São heróis! São heróis por se encontrarem acima da mediocridade da vida cotidiana. Habitam um mundo fantástico de chefões do crime onipotentes, prostitutas charmosas, assassinos austeros e taciturnos, traficantes que passeiam por qualquer parte da cidade. Um mundo em que a palavra “poder” significa mais que dinheiro, influência e status. O poder e a decadência se confundem neste mundo.

Tem poder quem pode oprimir. Não sei se algum autor disse isso, mas acho que podemos partir desta crença. No capitalismo quem tem capital pode oprimir, logo tem poder. No comunismo quem fazia parte do corpo burocrático podia mandar seus ”camaradas” para os gulags, logo podia oprimir, logo tinha poder. É um mecanismo muito simples. Neste universo imaginário que estamos tratando quem tem poder? Os chefões do crime, os capos da Máfia, os traficantes graúdos. Não importa. O poder aqui vem de uma fonte sombria e maldita. O poder não é vindo de um deus, de um pedaço de planeta ou de uma porção. O poder vem da droga, das armas, dos contatos, das alianças e da intriga. Algo bastante possível e tangível, mas não para a maioria da humanidade. É como se nós, meros mortais, não fossemos convidados a participar deste universo fantástico exatamente por não sermos fantásticos. O poder neste mundo não é bom nem ruim, é apenas poder. A origem desse poder não o caracteriza de forma alguma, tampouco sua finalidade. A única razão do poder neste mundo é a satisfação de quem o tem: seja disparando com uma escopeta no peito de um inimigo ou deitando na cama com a mulher amada (geralmente bem longe de ser uma donzela). Mais humano impossível, talvez.

A honra também se encontra embaçada e mal definida neste universo. O bem e o mal não possuem um contraste preto no branco, mas sim uma infinidade de matizes como o é na “vida real”. O personagem não mata o outro em nome da liberdade, da fraternidade ou da justiça. O personagem mata o outro porque é ele ou o outro. O personagem é marcado por um egoísmo tão humano que analisa-lo de maneira maniqueísta é pedir para se perder em um labirinto moral. Veja a protagonista de Kill Bill: ela caça aqueles que a fizeram sofrer, a deixaram em coma e a separaram de sua filha. Ela os caça por justiça? Não, ela os caça para satisfazer seu sentimento de raiva.

Por que não são heróis? Seus feitos são extraordinários, possuem uma certa honra (mesmo que embotada por um sentimento de egoísmo) e se sobressaem entre os outros. Ainda no exemplo de Kill Bill. Não poderia a sua alta perícia com armas ser comparada à força de Hercules. Assim como este fez seus 12 trabalhos, a outra passou por provas extraordinárias? E sua espada Hatori Hanzo, uma arma perfeita acima de todas as outras espadas, não poderia ser comparada ao escudo de Atenas com o qual Perseu matou a Medusa?

Caminham sobre a Terra como semi-deuses cobertos por uma aura de individualismo. Acima dos caixas de banco, atendentes de drive-thru, funcionários públicos e executivos. São donos do próprio destino e dos próprios infortúnios. Por que não são heróis? Por serem humanos?

terça-feira, janeiro 10, 2006

Indie Rock Iraniano

É inevitável no curso de Comunicação Social nos depararmos com um dos textos mais antológicos da bibliografia de estudos em comunicação (que é diferente de communication research e da comunicologia, amigos jornalistas): “A indústria cultural”, de Adorno e Horkheimmer. Os autores mostram neste texto uma idéia que tínhamos de maneira pueril e nebulosa quando tínhamos uns 16 anos: a maioria das pessoas consome música como se fosse carne enlatada porque vivem à mercê dos meios de radiodifusão que se encontram integrados em um mercado aonde se inserem gravadoras e toda a patota.

Desta idéia vaga aos 16 anos tiramos que o boyzinho da sala não tem culpa de ser do jeito que é porque ele não foi abençoado com o bom gosto de berço e nem com o Napster (naquele tempo). Pobre coitado! De alguma forma doente alguns pressupõem a partir desta mesma idéia uma premissa de que a partir desta diferença no refinamento cultural (“Até parece!”) ele um dia poderá conquistar as garotas como o boyzinho com o passar do tempo (“ATÉ PARECE!”).

Pois então! Mesmo sem se dar bem com as garotas este garoto tem um refúgio da nefasta e perversa indústria fonográfica. Ele tinha no Napster o seu oratório (que depois foi o Audiogalaxy e depois o Kazaa e depois o eMule e depois o SoulSeek...) e nos pequenos shows que freqüenta os seus cultos. Tudo soa tão verdadeiro e puro. Tão sujo e tão ali perto. Dá para tocar, para conversar e até para xingar. Dá para ver as gotas de suor na testa do guitarrista. Afinal, ele é de carne e osso e não exigiu uma dúzia de toalhas brancas.

E porque tudo é tão assim? Por que? Por que seus colegas boyzinhos não estão no show? Porque é para poucos. Você sabe disso. Just a few, a pack of few ones. Você tem um grau para estar lá. Começou com o Nirvana (como todo mundo) passou para o Smashing Pumpkins, depois para o Pavement, daí pro Yo la Tengo e depois o White Stripes.

E hoje? O que você ouve? Afinal, você é aquilo que você ouve, concorda? (Olha o boyzinho!) O que você anda ouvindo? A última bandinha legal de Manchester? A nova banda em voga no cenário hard core de Nova York? A sensação do metal escandinavo?

Não! Isso é coisa para leigo, não é? O que rola agora é o indie rock iraniano! Você conheceu isso quando? Há umas duas semanas, né? Antes você tava ouvindo o quê? Era ska austríaco, né? Você já sabe de cor as bandas da cena ska de Viena. Agora deixa seu computador ligado 24 horas procurando as últimas novidades da cena indie de Teerã e Kadiz.

Por quê? Porque é para poucos, muitos poucos. E talvez você impressione alguém. Talvez aquela garota dissimuladamente tímida de óculos grossos (que não é aquela garota que o boyzinho do colégio pegava, mas já é alguma coisa). Ou talvez aquele carinha que falava de shoegazing marroquino no último showzinho que você foi. E então você falaria de todas as bandas iranianas que você conhece naquela rodinha. Os Al-shalajara, os Al-guidar, o Al-face... Todas as bandas do Irã.

Então você iria se lembrar de quando você descia do seu bloco para brincar de bafo no pátio e voltava para casa com um monte de figurinhas novas. E voltaria para casa (ou iria para a casa da menina de óculos grossos) repetindo para si mesmo: “É pra poucos!”. Afinal, você é aquilo que escuta!