sábado, abril 22, 2006

Tateando a escuridão chamada intuição...

Tem uma hora na madrugada que a linha do horizonte se torna azul e pálida... como olhos cianofícios... a mancha se extende acima em um degradê passando por um violeta muito escuro até o preto...

Esta é minha hora favorita do dia...

THIS IS SO SISSY!

domingo, abril 09, 2006

O povo para o povo

Num sábado à tarde via televisão na casa de uns conhecidos. A falta de TV à cabo nos mantinha enclausurados em um ciclo onde mais da metade dos canais era evangélico, o que diminuía ainda mais as nossas opções. Acabamos exercendo nosso masoquismo assistindo a Globo, mesmo.

Ver televisão aberta e ir comer no shopping é a mesma coisa para mim. Quando vou ao shopping com fome eu começo a andar em círculos na praça de alimentação na esperança de achar algo que preste. Mas eu não me arrisco com a infinidade de fast-food’s de massas, de saladas e de comida japonesa. Para começar por eles terem senha (uma óbvia profanação do termo “fast-food”. Colocar senha em um lugar desses é praticamente assumir que a sua comida VAI demorar.). E em segundo lugar porque comida de shopping nunca é tão boa quanto em um restaurante. Além disso, comer no shopping para mim significa comer no Mc’Donald’s! O Big Mac é sempre o Big Mac em qualquer lugar do Brasil (a não ser que na Bahia a rede substitua o molho especial por vatapá).

Eu me lembro quando o Mc’Donald’s chegou a Goiânia. Isso foi no começo da década de 90 e eu tinha uns 8 anos. Mc’Donald’s era coisa para quem já tinha ido para Disney ou era filho de pais separados. “Fui nas férias para casa do MEU PAI em São Paulo e o MEU PAI me levou no MÉQUIDONALDIS!”. Existia algo naquela frase além do jeito entojado de falar “MEU PAI” e a questão de repetir o maldito “MEU PAI”. O MÉQUIDONALDIS era para poucos, os malditos filhos únicos de pais separados sabiam disso. Minha família é de São Paulo e eu já conhecia o Mc’Donald’s, o Bob’s e o Jack in the Box (e o sanduíche de rosbife perto do Mackenzie que era massa). E não é que eu esteja espezinhando os goianos desde a mais tenra idade (apesar de não perder a oportunidade). Com certeza os pentelhos brasilienses conheceram o MÉQUIDONALDIS no Rio de Janeiro. Antes dos pentelhos goianos, mas a antecipação não justifica a pentelhação. Pentelho é tudo igual, no Goiás ou no “DÊ-ÉFE”!

E quando chegou em Goiânia era uma questão de tempo que não fosse mais para poucos. E foi por isso que no dia da inauguração do primeiro Mc’Donalds de Goiânia o trânsito da Praça do Ratinho ficou intragável. Parecia que a cidade inteira tinha ido ao maldito Mc’Donalds. Pela primeira vez na vida eu xinguei as batatas mais crocantes neste quadrante da Via Láctea e o refrigerante de máquina na proporção mais perfeita entre xarope e água com gás que o homem já concebeu. Eu era uma criança e não sabia o que dizia. Estávamos indo para casa de uma tia e estávamos presos na frente do Mc’Donald’s lotado de carros entrando e saindo e fazendo uma bagunça no estacionamento da lanchonete e do Marcos (supermercado ao lado, para quem não conhece Goiânia). Quando chegamos à casa da minha tia ela havia saído. Foi ao Mc’Donald’s. Pela segunda vez na vida eu xinguei as batatas mais crocantes neste quadrante da Via Láctea e o refrigerante de máquina na proporção mais perfeita entre xarope e água com gás que o homem já concebeu. Mas eu era uma criança, e ninguém tinha celular naquele tempo (tirando o pai do primo de um amigo meu que morava em São Paulo, mas era mentira).

É natural: tudo que é para poucos começa a ganhar um brilho. O fetiche da ilusão da exclusividade. “Só eu e outros poucos podem comprar roupas da Daslu!”, “Eu sou um dos poucos que podem ter uma BMW!”, “Só eu e mais alguns escolhidos entendem esse filme iraniano chato pacas!”. É tudo a mesma coisa. A crença dos few-ones. Começou com os judeus e o reino dos céus e chegou aos nouveau riche e suas reproduções de Van Gogh na sala de estar.

Por algum capricho irônico do comportamento humano existe algo que até pouco tempo era o exclusivo do exclusivo dos mais ricos e sofisticados: gostar de pobre. Só os milionários montavam instituições filantrópicas e entre uma caridade e outra iam fazer um safári na África. Daí seus filhos passaram a ir para o continente mais ferrado do globo para ajudar a Cruz Vermelha, os Médicos sem Fronteiras e para viver lá junto à miséria expiando o pônei que ganharam aos 10 anos enquanto aquelas pobres almas passavam fome. E no lugar da porcelana Ming, dos cristais da Baviera e do Renoir os filhos dos ricos decoraram a mansão com todo tipo de artesanato senegalês, os talheres pitorescos feitos de madeira e uma reprodução enorme de uma foto de Sebastião Salgado. Nada era mais la creme de la creme do que a foto um miserável em preto-e-branco na sala de estar ou de um esfomeado na sala de jantar.

Aí a classe média, que estava atulhada de quinquilharia kitch, percebeu o que os ricos faziam de verdade. Uma versão mais estética do que social da guerra de classes então foi iniciada. O filho mais velho do engenheiro podia até fazer engenharia, mas se houvessem mais três filhos ao menos um faria sociologia, antropologia ou história (deve haver alguma estatística acerca disso). E os filhos da classe média descobriram as camisetas do Che, o Los Hermanos, o Pedro Almodóvar, a nouvelle vague, o cinema iraniano e culminaram no clímax da coisa toda: o cinema nacional. Paulo Francis falou nos primórdios que nada era mais classe média que Godard. Hoje ele diria que nada mais classe média que torcer por filme brasileiro no Oscar e votar no PT. Os filhos da classe mais alta já transcenderam o Waltinho (quer filho de banqueiro que goste mais de pobre que o diretor de “Central do Brasil”?) e já estão no maracatu e no bumba-meu-boi.

Mas para ver estas manifestações in loco fica muito caro para a classe média brasileira hoje em dia. Uma viagem de avião para o nordeste está pela hora da morte e os melhores hotéis estão sempre cheios de estrangeiros querendo ver miserável de perto. Então os filhos da classe média acochabraram. Bastou uma modernete em alguma coluna com pinta “alternativa” dar o aval que o funk carioca invadiu as boites. Fica bem mais barato pagar uma van para pegar um suburbano ali na “perí” do que trazer de avião um grupo de mamulengos diretamente de Olinda. Eu não sei quem começou isso, mas espero que tenha feito isso pelo humor da coisa. Se foi pode contar para todo mundo que a piada acabou. Nas festas nas universidades o tal do forró universitário impera. Forró universitário? Como assim? Existe uma teoria e um método do forró e eu não estou sabendo. Até onde eu sabia era só esfregação mesmo. Que tipo de acadêmico serei eu ignorando a cátedra do forró?

Agora o povo quer o que é seu: o povo também quer ver o povo. O pobre também quer fingir que é pobre. Não aquele pobre recalcado que vive reclamando. O pobre agora quer ter orgulho de não ter água encanada, ensino fundamental, asfalto e saúde. O pobre quer mostrar que ele não tem dinheiro para comprar um punhado de farinha de mandioca feito pelos descendentes do quilombo Kalunga por 20 reais, mas que ele pode ser pobre também.

Para o pobre não basta apenas ver as modelos-atrizes do “Caldeirão do Huck” rebolando ao som do funk carioca. Nem ver as aventuras de Laranjinha e Acerola, a versão do Vidigal de Tom Sawyer e Huckelberry Finn. Agora o pobre quer ver o Cledysson Ricardo cantando rap com os “chegado da quebrada” e a Clausidete botando as carnes para requebrar ao vivo com a Regina Case falando o quanto aquilo é lindo e puro. Depois do “bom selvagem” de Rousseau agora temos o “pobre bonito” da Regina Casé.

E se a Globo estiver certa! E se pobre vender mesmo? Assim? Em pleno sábado à tarde o suburbano deixa de lavar o Golzinho para ver suburbano passando na TV. Os patrocinadores comemoram e o feed-back é instantâneo. Para quem está desempregado é só ficar ligado: daqui a pouco rola um casting para coreografia de arrastão.