quarta-feira, julho 27, 2005

Quem conta um conto... não tem competência (e nem culhão) para escrever um romance!

Cornutto Contenti

O carcamano estava já berrando lá na sala. Havia chegado com Gérson, irmão de Sirlene. Eu já o vi uma vez. Aquele jeitão bonachão, a cara sempre vermelha como a careca, a barba ruiva, os olhos brilhantes e o jeito estabanado de falar. Falava de signos, horóscopo e essas coisas. Perguntou meu signo. Eu não sabia. Perguntou minha data de nascimento e falou que eu era “de escorpião”. Naquele dia na casa de Gérson eu já havia ido muito com a cara do tipo espalhafatoso. Tinha aquela simpatia perene que depois de alguns segundos se torna nauseante e cansativa. Aquela expressão meio boba que alguns gringos têm. Sorridentes e festivos, como se por estarem no Brasil a qualquer momento uma mulata com paetês fosse colocar um copo de caipirinha em sua mão e sentar no seu colo.

Sirlene não era mulata. Pelo contrário, era loira dos olhos verdes. Tinha uma corzinha de sol, mas estava bem longe de fazer parte das garotas do Sargentelli. Talvez pudesse ser uma chacrete: tinha as pernas e o quadril muito bem desenhados e rijos, a cintura bem delineada e os seios a esta altura já não importavam muito, eram satisfatórios. Era um casal contrastante. Mesmo falando italiano, a voz de Sirlene era discreta e calma. Seus gestos eram encobertos por uma certa sutileza. Ela começou a me olhar com certa distinção, muito discretamente como tudo que fazia. Me olhava em rápidas olhadas enquanto o namorado falava efusivamente com os outros sentados no sofá. Vez ou outra ele se derretia em um romantismo por demais explícito. “Mia bella donna”, “Enamoratta piu bella” e a abraçava e a beijava fortemente. Suas bochechas vermelhas estufavam e ele parecia mais soprar o rosto de Sirlene que beija-la. Ela soltava da boca carnuda um sorriso amarelo e seus olhos pareciam o de alguém que se sufocava entre aqueles braços gordos e vermelhos.

A uma certa altura, Giuseppe me descobriu outra vez na mesa. Começou a fazer brincadeiras estúpidas e infantis e a me chamar de “Il Scorpio”. A esta altura quem começava a ficar vermelha era Sirlene. Desta vez ela me olhava menos discretamente e com um certo pedido de desculpas pelo namorado. Era um pentelho o italiano.

Encontrei Sirlene por um acaso em um restaurante. Estava sozinha e vestida de branco. Foi daí que vi que era médica. Cumprimentei-a e ela timidamente convidou-me para que eu sentasse. Conversamos e ela me contou que conhecera Giuseppe quando estava fazendo especialização em Roma. Ele era de Nápoles. Quando ela voltou para o Brasil, Giuseppe apareceu em São Paulo e comprou um apartamento próximo ao Bexiga. Desde então os dois estavam oficialmente juntos.

Do restaurante acabamos vindo para o meu apartamento, nos Jardins. Sirlene foi inicialmente bastante recatada, mas foi se rendendo pouco a pouco. Parecia que eu exercia sobre ele o fascínio que nos contamina quando estamos à no parapeito da janela de um prédio muito alto. Sabemos que não é a queda que mata, mas sim o impacto quando se chega ao chão.

A coisa se seguiu desde então. Foi apenas depois que passamos aquela barreira que separa um caso de um amante que notei que o que Sirlene tinha de beleza, elegância, sorriso e corpo ela tinha de “nóia”. Depois que nos amávamos, Sirlene deitava a cabeça sobre meu peito e começava a entoar seu mantra neurótico: “Eu não deveria estar fazendo isto!”, “Ele é tão bom para mim!”, “E se ele descobre?”, “Eu não sei se conto para ele!”. Eu fumava e esperava que logo ela fosse pular fora, não queria acabar com o que havia entre nós. “Sabia que cigarro mata?”, ela sempre me falava.

Agora ele estava lá, junto com Gérson e Sirlene na minha sala. Resolvi ficar no quarto. Deve constar em algum manual de etiqueta que não é de bom tom receber uma visita súbita enrolado em um lençol, principalmente quando se está tendo um caso com a mulher do inconveniente convidado. Deve ter sido muito fácil ele ter entrado no apartamento. Afinal, a fechadura da porta da frente era com certeza uma das últimas coisas que eu pensava quando estava com Sirlene.

“Ele vai me ouvir!” - Sirlene correu para lá vestida apenas com uma camiseta minha que lhe cabia como uma camisola. Mal ela sabe que somente os mais cafajestes têm vocação para “cornutto contenti”. Homens que se impõe sobre suas mulheres e que ao tomarem noção da traição destas recolhem-se em sua vergonha e falta de brio. O italiano berrava na sala. “Putana! Putana! Putana!”.

Eu já esperava o pior quando um tiro confirmou minhas expectativas. Gérson gritou histérico. “Assassino! Assassino! Assassino!”. Mais um tiro e tudo que ouço é o choro indefeso e contido de Gérson, os passos pesados de Giuseppe e o barulho das portas do meu apartamento sendo abertas. O italiano abre violentamente as portas, que batem na parede fazendo cada uma um estrondo que me soa mais como um sino em contagem regressiva.

A porta do quarto é aberta violentamente e como um relâmpago surge a figura de Giuseppe. Ele está mais vermelho que o normal e a arma está firmemente segura em suas mãos gordas e de uma maciez risível. Giuseppe aponta a arma para mim e começa a tremer. Entre seus dentes, sibila algo em italiano e começa a berrar. “Ricardão! Ricardão!”. Ele grita com raiva. Seguro um riso inconveniente. “Ricardão!”. Giuseppe grita agora mais prolongadamente e mais alto e seu dedo finalmente aperta o gatilho da arma que dispara quatro tiros em seqüência sobre meu peito.

Meu corpo antes sentado na cama, cai sobre o colchão tingido de vermelho. Só então eu solto o sorriso de desprezo que prendera desde aquele maldito jantar.

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