sábado, setembro 04, 2004

A Cruzada das crianças

É muito comum se falar em uma dicotomia entre o mainstream e o underground. A grosso modo o mainstream é o “nível cultural” vigente nos mass media enquanto o underground é um meio cultural mais afastado da grande massa. Em outros termos (e também a grosso modo) no mainstream as obras (bem como os artistas) têm um caráter maior de produto enquanto no underground as coisas se dão de uma forma um pouco mais artística e de certa forma mais natural.

Esta maior espontaneidade abre preceito para uma outra forma de ver a relação entre underground e mainstream: uma visão estratificada dos meios culturais. Muitos vêem o underground como sendo o ponto médio entre o mainstream (ou a própria cultura de massa) e a cultura erudita. Esta visão de certa forma deriva (intencionalmente ou não) de uma teoria acerca dos níveis de cultura elaborada por Donald McDowell (crítico de cinema e literatura americano). McDowell fala do “lowcult, midcult e highcult”, que seriam os níveis de cultura estratificados um sobre o outro com uma grande carga de valor que de certa forma valoriza a erudição e a intelectualidade. Não há como negar que são nesses quesitos que o mainstream é mais questionado.

Não também há como negar a plasticidade e a reprodutividade no mainstream. Tudo parece ser estatisticamente elaborado e montado de forma a fazer sucesso (leia-se “vender”). O nível de complexidade no uso das linguagens no mainstream é praticamente basal para melhor assimilação do público (ou consumidores). Existe o estudo de um conceito para uma banda ou artista, uma chave de onde saíram a identidade visual e sonora (e em muitos casos até a “personalidade” do artista frente à mídia). O artista se torna aí mais uma etapa no processo de elaboração da obra, um operário na linha de montagem que como tal deve possuir o nível de instrução ideal para executar sua função. Veja, por exemplo, o programa Fama: temos lá pessoas com vozes afinadas, estudadas e trabalhadas, mas falta personalidade à voz delas (pessoalmente acho que o programa não passa de um curso profissionalizante televisionado). Os “artistas” do Fama nos dão uma noção do que é o mainstream: tudo deve ser asséptico, padronizado e sem identidade.

Pudemos ver que é bem fácil se delimitar o mainstream. É uma área com características quanto à criação e a natureza da criação bastante próprias. Mas quando tentamos delinear o underground encontramos dilemas aí. O que é underground? Se vender é mainstream, se não vender é underground? E se for de alguma forma “fabricado”, é mainstream? Talvez as linhas que delimitam o underground sejam muito mais ligadas ao campo da identidade do que qualquer outro. Vemos que os mais diversos estilos e formas de expressão no underground possuem como elemento coesivo o fato de serem partes integrantes do underground.

De certa forma, ao meu ver, é este caráter de identidade que dá origem à visão dicotômica entre underground e mainstream. O problema é que o “eu sou do underground” se torna um a priori para o fruidor (ouvinte ou espectador) ao entrar em contato com qualquer peça. A partir daí a sua experiência não se encontra puramente fundada na sensibilidade, mas carregada de uma questão de identidade. De certa forma, abrir-se para um filme hollywoodiano ou uma música pop se torna distanciar-se do underground, corromper-se até. Esta questão de identidade ainda forma preconceitos quanto a estilos e quanto ao mero fato de algo fazer parte do conhecimento comum. O que é mainstream se torna ruim e ponto...

Ruim, por quê? Por ser mal feito? Não acho que dispondo de todo o dinheiro que possui a indústria cultural vá se privar de lançar mão dos melhores produtores, técnicos de som, produtores gráficos e todo um staff de primeira linha a fim de poder assegurar um nível de qualidade invejável. Por ser “insignificante” ou “vazio”? Quantos artistas do meio underground não possuem influências e estilos originários do mainstream. Quantas músicas e filmes tipicamente mainstream não ilustraram e “emblematizaram” um fato ou um personagem.

O ato de se relevar o mainstream a um status de “não-cultura” é um ato que encarna bem um maniqueísmo que constrói todo um fascismo cultural que fecha os olhos do público para um micro-universo mesquinho e aristocrático. Não falo em cultura para as massas ou em cultura das massas, falo em não se colocar acima da massa apenas por não estar consumindo da mesma pasta que eles.

No mais, lembre-se que por mais “intelectualizado” que você seja sempre haverá alguém “acima”. Sinceramente, a maioria das pessoas que adotam uma visão hierárquica da fruição estão fadadas a uma série de frustrações a medida que estes “galgarem degraus na escada cultural”. Assim sendo, como negar que o que este tinha como teto não está ultrapassado frente ao que este tem acesso hoje? Neste mesmo raciocínio, estaria este desconsiderando toda a base que ele já tinha em detrimento do que ele tem como uma “fruição de elite” no seu atual estado de fruidor? Um prozac ajuda!

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